segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Sambaquis, monumentos do nosso passado

Sambaquis vêm ganhando mais e mais espaço nas discussões acerca da pré-história brasileira, fato é que esse tipo de sítio aparece no litoral de quase todo o Oceano Atlântico, sendo bastante comuns nas costas do Brasil, Dinamarca, Canadá e Portugal e é tema de interesse científico desde a metade do século XX. A origem da palavra Sambaqui vem do Tupi, tamba que significa concha e ki amontoado, a união desses dois termos acabou por se tornar, com o uso, o termo atual Sambaqui, porem há outros nomes que são usados internacionalmente, como Shellmouds, literalmente "monte de conchas", nos países de língua inglesa, Kjökkenmodding na Dinamarca e Conchales em diversos países de língua latina. Tais monumentos esquecidos no meio da nossa paisagem são marcos extraordinários de nossa história, milênios antes da chegada dos Europeus e até mesmo da chegada das atuais populações indígenas do litoral.

Sambaqui da Figueirinha I em Jaguaruna (SC).
 Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sambaqui

Maria Dulce Barcellos Gaspar de Oliveira, doutora em arqueologia pela USP e professora colaboradora da Universidade federal do Rio de Janeiro (UFRJ) define Sambaqui: "Os sítios são caracterizados basicamente por serem uma elevação de forma arredondada que, em algumas regiões do Brasil, chega a ter mais de 30 metros de altura. São construídos basicamente com restos faunísticos como conchas, ossos de peixe e mamíferos. Ocorrem também frutos e sementes, sendo que determinadas áreas dos sítios foram espaços dedicados ao ritual funerário e lá foram sepultados homens, mulheres e crianças de diferentes idades. Contam igualmente com inúmeros  artefatos de pedra e de osso, marcas de estacas e manchas de fogueira, que compõem  uma intrincada estratigrafia." (Gaspar, M. D.,  Descobrindo o Brasil, Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro, 2014, p. 9). 

Sambaquis podem ter formas diversas, em geral são semi-esféricos, cônicos, alongados ou achatados, montes que às vezes se confundem na paisagem natural pois a presença de vegetação em sua superfície não é incomum, como dito por Madu Gaspar, as dimensões que esses sítios podem ter são bem variáveis, a maioria têm em média até três metros de altura, no sul, particularmente em Santa Catarina, chegam até trinta ou vinte metros de altura, porem vão diminuindo a medida que se aproximam da região sudeste.

Foto mostrando a estratigrafia e as profundidades
do Sambaqui da Tarioba.
Fonte: Macário, K. D. et al. 2014. Chronological
model of a Brazilian Holocene Shellmound
(Sambaqui da Tarioba, Rio de Janeiro, Brazil).
No Brasil as datações também variam, podem ter mais de 7000 anos de idade, como é o caso do Sambaqui Camboinhas no Rio de Janeiro, que apresenta datação de 7958 ± 224 BP, segundo a antropóloga Lina Maria Kneip, ou serem bem mais recentes, como o Sambaqui Vamiranga em São Paulo, com datação de 840 ± 80 BP, segundo Caio Del Rio Garcia. Diversos estudos mostram que eles foram ocupados e construídos ao longo de muito tempo, e não feitos em uma mesma geração ou poucas delas, tal construção gradual forma os chamados estratos, que podem ter características diferentes, às vezes por uma pausa na ocupação, uma deposição acelerada ou retardada ou mudanças ambientais. O Sambaqui da Tarioba no Rio de Janeiro, por exemplo parece ter o início da sua ocupação entre 3818 e 3691 anos atrás e o fim dela entre 3399 e 3160 anos atrás, sua ocupação durou uma média de 500 anos, tal datação foi feita pelo Instituto de Física da Universidade Federal Fluminense com base em carvões de diversos estratos e conchas do Bivalve Iphigenia brasiliana, um tipo de molusco.

"Formados geralmente por sucessivas ocupações ao longo de centenas ou milhares de anos os sambaquis apresentam em geral uma intricada estratigrafia. As distintas camadas que o compõe - correspondentes a diferentes etapas de sua construção e ocupação raramente estão dispostas de modo regular. Antes, se entrecruzam, mergulham, desaparecem, reaparecem, entrecortadas constantemente por níveis de sedimentos calcinados, de carvões resultantes de fogueiras, ou mesmo de sedimentos arqueologicamente estéreis." (Lima T. A., Revista USP, São Paulo, n.44, dezembro/fevereiro 1999-2000, Em busca dos frutos do mar: os pescadores-coletores do litoral centro-sul do Brasil, p. 283).

Foram construídos tanto sobre embasamento rochoso como sobre sedimento arenoso, resultando que junto com as conchas e restos de animais o sambaqui tem como sedimento em seus estratos areia e às vezes terra, são encontrados tanto em encostas como em planícies, geralmente associados com ambientes lagunares, baías e estuários, sempre perto da costa, dois pontos são importantes destacar, primeiro que a linha da costa em muitos lugares do nosso litoral nem sempre foi a mesma, durante o Holoceno o nível do mar variou e isso influenciou a construção de Sambaquis, segundo que há sambaquis que seguem rio acima, ou seja, podem se afastar do mar mas somente em ambientes fluviais. O motivo para essa associação em tais ambientes é simples, uma vez que esses ambientes apresentam grande produtividade biológica são perfeitos para se conseguir grandes quantidades de alimentos, de fato, o material biológico encontrado nos sambaquis indica que essas populações tinham como base alimentar organismos aquáticos, porem o consumo de animais como mamíferos, que eram caçados mais para o interior também ocorria.

 Fazer inferências sobre o consumo de material vegetal já é mais complicado, uma vez que esse tipo de vestígio não se conserva muito bem, provavelmente raízes e frutos também eram importantes para a dieta dessas populações, Walter Alves Neves, renomado antropólogo brasileiro e Verônica Wesolowski, arqueóloga, ambos pesquisadores da Universidade de São Paulo, demonstraram, utilizando esqueletos de sambaquieiros em Santa Catarina, que havia diferentes graus de consumo vegetal nessas populações, através dos altos índice de cáries, em contraste com pescadores-coletores de outras localidades, tal conclusão pode ser encontrada no trabalho de 1994 intitulado de "Incidência de cáries e diversidade de estratégias de subsistência em grupos de coletores-pescadores-caçadores pré-cerâmicos do litoral norte de Santa Catarina, Brasil.".

"Essa abundância atraiu grupos humanos, no passado, graças à natureza constante, estável e previsível dos recursos marinhos aí existentes. Nessas regiões estuarinas eles podiam obter o máximo de alimentos com o mínimo de esforço e risco, durante todo o ciclo anual, poupando-se de investidas pouco frutíferas em ambientes de baixo retorno, ao contrário do que ocorria em geral no interior. A fartura e a disponibilidade permanente de alimento minimizava a mobilidade dessas populações, reduzia a necessidade de locação de sítios adicionais para obtenção de recursos alternativos, favorecendo uma relativa sedentarização e criando uma plataforma para a formação de grupos maiores." (Lima T. A., Revista USP, São Paulo, n.44, dezembro/fevereiro 1999-2000, Em busca dos frutos do mar: os pescadores-coletores do litoral centro-sul do Brasil, p. 272).

A arqueóloga Tânia Andrade Lima, atualmente no Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro aponta que os sambaquis ocorrem desde o Rio Grande do Sul até a Baia de Todos os Santos, na Bahia, principalmente nos ambientes lagunares que se sucedem em todo esse trecho, não ocorrem em grande parte do Nordeste pois apresentam costa retilínea e sem formação lagunar, voltam a surgir no litoral do Maranhão e do Pará, em suas baías e reentrâncias da costa.

Os sambaquis do Sul se diferenciam dos outros sambaquis do nosso litoral, por uma diversidade de aspectos, a altura é o aspecto mais notável, tais construções atuam como verdadeiros monumentos e tem sua construção feita de forma consciente, sendo assim  a altura dos sambaquis indicaria uma diferenciação social, sambaquis muito altos indicam sociedades organizadas em sistemas mais complexos, sendo assim os sambaquis do sul mostram que nesses pontos tais sociedades tinham se tornado mais complexas e com populações mais numerosas que os sambaquis mais ao norte, a construção do sambaqui como monumento requer muito esforço e cooperação, provavelmente tem uma orientação ideológica.

Uma diversidade de cultura material é encontrada na maioria dos Sambaquis, entre ferramentas diversas, objetos talvez rituais e intensamente trabalhados como adornos e zoólitos e ainda objetos com funções desconhecidas. Geralmente eram feitos de matéria prima que podia ser coletada no ambiente do entorno como rochas basálticas e quartzitos, ossos de pequenos mamíferos e ossos de peixes, também há raros exemplos de objetos produzidos com materiais coletados mais para o interior do continente e materiais de difícil acesso como ossos de baleia. As ferramentas, comumente feitas de rochas basálticas e quartzito, que podiam ser polidas, semipolidas ou lascadas, incluíam pilões, laminas de machado e lascas de inúmeras formas feitas a partir de seixos, entre outras ferramentas,  não só rochas eram utilizadas, de forma menos comum, ossos, dentes e conchas eram usadas para fazer projéteis, anzóis, raspadores, furadores, facas e agulhas. Adornos por outro lado eram na sua grande maioria feitos em ossos, dentes e conchas, são comuns contas, colares e pulseiras, algumas dessas peças foram fruto de muito investimento, indicando que provavelmente havia um propósito simbólico, principalmente quando feitas de partes de animais de difícil captura como dentes de tubarão.

Zoólito em forma de peixe, esculpido em diabásio, estilo
realista, foto de B. Furrer.
Fonte: Lima T. A., Revista USP, São Paulo, n.44,
 dezembro/fevereiro 1999-2000, Em busca dos frutos
do mar: os pescadores-coletores do litoral centro-sul do
 Brasil, p.282, Figura 8.
Um dos objetos de grande importância encontrados nos sambaquis são os chamados zoólitos, consistem em esculturas muito trabalhadas, e por tanto com grandes esforços empreendidos na sua produção, na forma de diversos animais comuns a essas cultura, uma característica comum a todos eles é uma pequena cavidade feita no ventre, há uma concordância entre os arqueogeólogos que tais objetos tem função ritualística e simbólica, são também exclusivos do litoral de São Paulo ao Rio Grande do Sul, onde existem os grandes sambaquis e ocorrem outros objetos elaborados de pedra como argolas, esferas, discos com furo no meio e placas.

 A presença de objetos tão elaborados sustenta a ideia de sociedades complexas, especialmente nos grandes sambaquis, a ocorrência de zoólitos indica uma sofisticada expressão artística, só possível com trabalho especializado, nos levando a conclusão que havia uma organização do trabalho e por vez demonstração de diferenciação. Outra característica que aponta para a mesma linha é a presença de elaborados enterramentos que expressa poder e liderança.


Diversas interpretações podem ser feitas sobre as sociedades sambaquieiras através do que é encontrado de cultura material nos sítios, ao que tudo indica essas sociedades não eram completamente nômades, e sim com uma certa sedentariedade, de fato os sambaquis intercalavam períodos de ocupação e de não ocupação, indicados na estratigráfica, camadas com maior quantidade de material malacológico indicaria um período de ocupação e de construção, camadas com maior quantidade de sedimentos como areia indicaria um período de não ocupação, quando ocorria uma deposição natural de sedimentos. É possível que essas populações migrassem de sambaqui em sambaqui ou só os utilizassem em certo período do ano. Uma outra característica importante de se notar é que não é incomum encontrar alguns sambaquis relacionados em um pequeno "conjunto", ou seja, eram construídos próximos um dos outros, ocorrência comum no litoral do Rio de Janeiro.


Sendo assim é notável a importância do estudo desses sítios para entendermos mais sobre essas populações que viveram por tanto tempo em nossa costa, populações que chegaram a se organizar de tal forma que foi possível construir os primeiros monumentos do Brasil, apesar das pesquisas, grandes questionamentos ainda estão sendo feitos, como foi a migração dessas populações? Uma vez que os Sambaquis mais antigos se encontram em São Paulo e Rio de Janeiro. O que levou as populações do Sul a se tornarem mais complexas que as populações do resto da costa? Qual o grau de hierarquização que eles chegaram? O que levou ao desaparecimento do Sambaquieiros? Para essa última questão existem algumas teorias, talvez populações do interior tenham pressionado as populações costeiras, um indicativo disso seria a cerâmica que passa a aparecer no litoral e nos próprios Sambaquis, a tecnologia teria chegado junto com os novos invasores que teriam substituído as populações mais antigas e aproveitados sambaquis já construídos, ou talvez alterações ambientais ou até mesmo doenças tenham alterado o modo de vida e o número dessas sociedades, fato é que a cada nova escavação novas perguntas são feitas e cada vez mais a nossa compreensão sobre essas surpreendentes populações aumenta.


Escrito por:
Arthur Braga Alves

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